Os contratos administrativos no período de Covid-19
Os efeitos da pandemia do coronavírus (Covid-19) na sociedade brasileira estão sendo sentidos em todos os âmbitos negociais, inclusive nas relações comerciais e no cumprimento das obrigações contratuais.
Especificamente abordando a situação dos contratos administrativos, considerando os reflexos das medidas de prevenção ao risco de contágio e os efeitos negativos sobre eles causados, necessário observar as possibilidades para restabelecer o seu equilíbrio econômico-financeiro.
Como sabido, em regra, nas relações contratuais deve ser observada a vontade das partes, ideia reforçada na alteração trazida pela Lei de Liberdade Econômica, no artigo 421 do Código Civil. Veja-se:
Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.
Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:
I – as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução;
II – a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e
III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.
Acontece que a pandemia, diante da sua total imprevisibilidade e do impacto em âmbito global, trouxe um desafio à estabilidade do pacta sunt servanda, que é a afirmação de força obrigatória dos contratos assumidos, tendo em vista que a obrigação celebrada se deu por iniciativa das partes e está alicerçada na autonomia da vontade.
A relativização do pacto coaduna com a cláusula rebus sic stantibus, que instrumentaliza a teoria da imprevisão, tendo o objetivo de ancorar a execução do contrato às condições existentes ao tempo em que as partes manifestaram suas vontades. Isto porque a imutabilidade das cláusulas contratuais só devem ser mantidas se as condições das partes forem as mesmas no momento em que pactuaram o contrato e até o final da execução deste. Em caso de mudanças significativas e imprevisíveis destas condições, como o presente, o equilíbrio resta maculado.
Nesse sentido, coaduna o Código Civil com as teorias da imprevisão, caso fortuito e força maior e onerosidade excessiva, respectivamente expostas abaixo, que devem ser aplicadas aos contratos administrativos conjuntamente com a Lei 8.666/93:
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
A Lei 8.666/93, que regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública, também traz consigo a teoria da imprevisão, prevendo medidas necessárias para possibilitar a manutenção do equilíbrio financeiro dos contratos administrativos, quando há algum fato superveniente. Veja-se:
Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos: (…)
II – por acordo das partes: (…)
d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual. (…)
§5º Quaisquer tributos ou encargos legais criados, alterados ou extintos, bem como a superveniência de disposições legais, quando ocorridas após a data da apresentação da proposta, de comprovada repercussão nos preços contratados, implicarão a revisão destes para mais ou para menos, conforme o caso.
§6º Em havendo alteração unilateral do contrato que aumente os encargos do contratado, a Administração deverá restabelecer, por aditamento, o equilíbrio econômico-financeiro inicial.
Ou seja, não há dúvidas que a legislação vigente aplicável aos contratos administrativos regulamentam situações como a vivenciada neste momento, uma vez que, por óbvio, à época em que foram celebrados os contratos administrativos, as cláusulas pactuadas, inclusive as que envolvem preço e forma de prestação de serviços, estavam em acordo com a situação vivenciada na ocasião da apresentação da licitação. Após a assinatura do contrato, qualquer fato anormal no contexto econômico pode ser chamado de superveniente.
Sobre o tema, o Tribunal de Contas da União já manifestou-se no seguinte sentido:
Equilíbrio econômico-financeiro, assegurado pela Constituição Federal, consiste na manutenção das condições de pagamento estabelecidas inicialmente no contrato, de maneira que se mantenha estável a relação entre as obrigações do contratado e a justa retribuição da Administração pelo fornecimento de bem, execução de obra ou prestação de serviço. (TCU. Licitações e Contratos. Orientações e Jurisprudência do TCU. 4ª edição revista, atualizada e ampliada. p. 811.).
As consequências da pandemia vivida e as medidas a serem tomadas para o retorno do equilíbrio econômico-financeiro, devem ser analisadas caso a caso, à luz do edital, do contrato administrativo e das leis de regência.
Os impactos decorrentes do novo coronavírus podem ensejar, a depender da análise concreta do caso, desde a dilação do prazo para cumprimento da obrigação; a revisão do preço contratado; a suspensão do contrato administrativo; até a rescisão do contrato com o ente público. Essa análise casuística é essencial para não expor o administrado a sanções, que vão desde multa até a suspensão de contratar com a Administração Pública
As medidas mencionadas acima poderão ser tomadas através de uma determinação da Administração, de um acordo entre as partes ou do ajuizamento de ação ordinária de reequilíbrio econômico-financeiro.
Diante do cenário atual, acredita-se que são duas as possibilidades a serem aplicadas: a revisão dos valores pactuados ou a rescisão contratual. Ressalta-se que por se tratarem de medidas utilizadas em situações não previstas, independem de previsão em edital e no contrato.
A revisão contratual será utilizada no intuito de reestabelecer a equação econômica e, caso esta não seja suficiente, pode ser requerido a rescisão prevista no artigo 78, XVII da Lei 9.666/93:
Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato:
XVII – a ocorrência de caso fortuito ou de força maior, regularmente comprovada, impeditiva da execução do contrato.
Trazendo as normas mencionadas anteriormente para os contratos administrativos estabelecidos durante o período da pandemia, será essencial que o contratado faça uma rigorosa análise de risco, uma vez que haverá uma relativização na teoria da imprecisão devido a previsibilidade dos efeitos econômicos da crise, e, por isso, a possibilidade de revisão contratual será reduzida.
Isto posto, sendo incalculáveis as consequências dos acontecimentos macroeconômicos recentes, é patente a necessidade de readequação do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos, que, caso não seja feita de forma pacífica, a aplicação da legislação aplicável à espécie poderá ser debatida judicialmente.
Patrícia Teodoro
Pós-graduanda em Direito Civil pela Faculdade CEDIN.
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