Comentários à Lei da Pandemia: impactos no Direito das Famílias e Sucessões
No dia 10 de junho entrou em vigor a lei 14.010 de 2020, chamada de “Lei da Pandemia” ou “Lei do Regime Jurídico Emergencial e Transitório” (Lei do RJET), que tem como objetivo regular as relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia do coronavírus (Covid-19).
A legislação estabeleceu como termo inicial dos eventos derivados da pandemia a data de 20/03/2020, que é a data do Decreto Legislativo no.06, que reconheceu a ocorrência do estado de calamidade pública para autorizar flexibilizações orçamentárias em virtude da pandemia.
Isso não significa que eventos em período anterior à supracitada data não possam ensejar revisões contratuais ou aplicação de outros institutos do direito privado, até mesmo porque a pandemia já se fazia presente anteriormente, tanto que no dia 03 de fevereiro o Ministério da Saúde declarou emergência em saúde pública, através da Portaria nº 188. Acontece que a análise de cada caso concreto será realizada com base nas normas e princípios gerais do Direito Civil e não nas normas do RJET.
Merece destaque o fato da mencionada Lei não revogar ou alterar dispositivos do Código Civil e de leis extravagantes, mas apenas suspender a sua aplicação no que com eles for incompatível, tendo em vista o se caráter temporário em que objetiva criar regras transitórias, dado o caráter emergencial da crise.
A nova lei trouxe impactos no âmbito do Direito Civil, no que diz respeito aos prazos prescricionais e decadenciais, considerando-os suspensos ou impedidos pelo prazo da lei; à assembleia geral das pessoas jurídicas de direito privado, em que permite que os atos associativos sejam realizados por meio remoto; às relações de consumo, tendo suspendido o direito de arrependimento nos contratos celebrados à distância no caso de entrega de produtos perecíveis e medicamentos; ao usucapião, ficando suspensos os prazos de aquisição para a propriedade no período considerado; aos condomínios edilícios, tendo permitido a assembleia por meio virtual; ao regime concorrencial e ao direito de família e sucessões.
No que tange ao Direito de Família, o novo diploma trouxe repercussões na prisão civil por dívida alimentícia e no prazo para o processo de inventário e partilha.
A prisão do devedor de alimentos é a única forma de prisão civil admitida no ordenamento jurídico brasileiro (art. 5º, LXVII, CF). Registra-se que, caso o executado, intimado para pagar o débito alimentar, não o faça ou apresente justificativa não aceita pelo juiz, ser-lhe á decretada a prisão por prazo de 01 (um) a 03 (três) meses, a ser cumprida em regime fechado (art.528, §1º e §3º, CPC).
Todavia, a nova lei determina que, até o dia 30 de outubro de 2020, isto é, enquanto vigente o regime jurídico emergencial, a prisão seja cumprida exclusivamente em regime domiciliar, em virtude do perigo de contágio da doença, respeitando a dignidade da pessoa humana, em observância a Recomendação 62 do CNJ.
A 3ª Turma do STJ não adotou esse entendimento, evidenciando o conflito entre o direito à saúde do alimentante e o direito do alimentado, parte mais vulnerável, de ter assegurada a sua verba alimentar. Embora a lei em questão ainda não estivesse em vigor, já havia a Recomendação do CNJ no sentido da prisão civil do alimentante ser cumprida em regime domiciliar. Ainda assim, a Corte Superior considerou mais prudente determinar a suspensão das prisões civis durante a pandemia, tendo decidido pelo cumprimento da prisão em regime fechado após o período da pandemia, ou seja, optou pelo diferimento provisório da execução da obrigação cível.
Destacou o ministro Villas Bôas Cuevanão que “não é plausível substituir o encarceramento pelo confinamento social, o que, aliás, já é a realidade da maioria da população”, de modo que a prisão em regime domiciliar não cumpriria o mandamento legal e feriria, por vias transversas, a própria dignidade do alimentando.
A custódia cautelar justifica-se pelo iminente perigo de contágio da doença nos presídios, contudo essa medida pode não ser satisfatória, acarretando a inércia do devedor de alimentos, em prejuízo ao alimentante.
No tocante ao Direito das Sucessões, a Lei prorrogou o prazo para abertura da sucessão (era de dois meses a contar do falecimento), que passou a iniciar-se em 30 de outubro de 2020, para falecimentos ocorridos a partir de 1º de fevereiro de 2020. Além disso, a norma estabelece que o prazo de 12 meses para se ultimar o inventário ficará suspenso até 30 de outubro de 2020, se iniciado antes de 10 de fevereiro do mesmo ano.
Tal previsão é compreensível, tendo em vista a dificuldade no contexto de isolamento de levantar dados e reunir documentos. Entretanto, essa previsão pode gerar conflito com as leis estaduais que estabelecem penalidades pela não observância do prazo legal, não havendo ainda uma harmonização nesse sentido.
Nota-se, assim, que a Lei da Pandemia, apesar de abordar algumas questões controvertidas, visa mitigar os efeitos do coronavírus para preservar as relações jurídicas e proteger os mais vulneráveis.
Sílvia Costa Arujo
Pós-graduanda em Direito Processual Civil pela Faculdade CEDIN
Referências:
GAGLIANO, Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Comentários à Lei da Pandemia (Lei 14.010/2020). Disponível em: <https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/859582362/comentarios-a-lei-da-pandemia-lei-14010-2020?utm_campaign=newsletter-daily_20200615_10201&utm_medium=email&utm_source=newsletter>.
HC 574.495/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/05/2020, DJe 01/06/2020.
SANTOS, Laísa. Os impactos da Lei da Pandemia (Lei nº 14.010) no âmbito do Direito das Famílias e Sucessões. Disponível em: <https://schiefleradvocacia.jusbrasil.com.br/artigos/859665328/os-impactos-da-lei-da-pandemia-lei-n-14010-no-ambito-do-direito-das-familias-e-sucessoes?utm_campaign=newsletter-daily_20200615_10201&utm_medium=email&utm_source=newsletter> .
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