INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA E OS DIREITOS HUMANOS
A definição de intervenções humanitárias até o presente tem causado controvérsias. Nem todos os Estados aceitam o princípio sobre o qual a definição de intervenção humanitária é construída. Uma das definições mais aceitas, segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (2019), é: “A teoria das intervenções humanitárias reconhece o direito de um Estado de exercer controle internacional sobre as ações de outro (Estado) relacionado à sua soberania interna quando contrário as leis humanitárias” (RYNIKER, 2011. Tradução nossa[1]). Outra definição afirma “Intervenção humanitária é definida como ação coercitiva por Estados envolvendo o uso de força armada em outro (Estado) sem o consentimento de seu governo, com ou sem a autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas com o propósito de prevenir ou colocar um fim a grosseiras e massivas violações dos direitos humanos (…) (RYNIKER, 2011. Tradução nossa[2]). As intervenções estavam previstas na Carta da ONU desde sua fundação no cap. VII.
Tratando-se de um contexto pós Guerra Fria, o cenário das relações internacionais começa a deparar-se com a necessidade de uma maior mobilização de recursos no que tange ao tratamento e à eficácia da proteção internacional dos direitos humanos, porque, segundo Abri (2011), a divisão bipolar do mundo em blocos antagônicos e a presença de zonas de influência serviam como contentores da eclosão de conflitos durante a GF. Após o fim da Guerra Fria há um aumento considerável nos conflitos tanto civil como internacionais. Importante ressaltar que há sim casos mais antigos que demandaram intervenções relacionadas, de alguma forma, com razões de ordem humanitária. Também, no período que se compreende entre o fim da II Guerra Mundial até o fim da Guerra Fria, diversos conflitos internos em países como Paquistão Oriental (atual Bangladesh), Camboja, etc, retrataram violações aos direitos humanos fundamentais com casos que chegaram a milhares de mortos e uma situação de violência absurda, mas que não justificaram – segundos os outros Estados e a comunidade internacional – uma ação de intervenção humanitária (LOBO, 2015).
Durante o período da Guerra Fria, o Conselho de Segurança, truncado principalmente pela presença de Estados Unidos e Rússia, os dois blocos antagônicos, aceitava a premissa da Carta das Nações Unidas de que o uso da força somente é aceitável em caso de legitima defesa e frequentemente levantavam a bandeira do princípio da soberania para evitar as intervenções humanitárias em outros Estados onde havia a violação de direitos humanos (WHEELER, 2003). Porém, é no período citado do término da Guerra Fria, a partir de 1991, que a magnitude dos conflitos armados, entre nações ou no âmbito doméstico de uma nação, evidencia a importância em se tratar sobre esta questão com estruturas e mecanismos mais coesos e concretos em vistas a garantir que situações que violaram em larga escala os direitos humanos fundamentais ficassem ao alcance da proteção internacional desses direitos (LOBO, 2015).
Assim, a comunidade internacional como um todo, passa a agir frente a conflitos com graves violações de direitos humanos de uma maneira mais direta e concreta e, também, menos restritiva quanto à definição da legitimidade de intervenções de caráter humanitário sem que o Estado onde estivesse ocorrendo o conflito tivesse autorizado. Segundo o embaixador Antonio Costa Lobo, porém, havia uma problemática neste sentido que fazia menção à utilização de uma mesma expressão (“intervenção humanitária”) para designar tipos diferentes de operações, assim como também utilizava-se expressões diferentes (“direito de assistência”, “intervenção de urgência”, “dever de ingerência”, etc) para tratar acontecimentos e documentos iguais. Com isso, e paralelamente a uma discussão sobre a importância de não se tratar as intervenções apenas de um ângulo político, diversos relatórios e resoluções de diferentes órgãos das Nações Unidas começaram a se evoluir e a se maior normatizar a nível internacional no que tange às intervenções de caráter humanitário (LOBO, 2015).
Ao se tratar da intervenção de caráter humanitário, faz-se necessário, primeiramente, um breve paralelo sobre o Direito Internacional Humanitário, previsto nas disposições do direito internacional. Segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha,
O Direito Internacional Humanitário – DIH, é um conjunto de normas que procura limitar os efeitos de conflitos armados. Protege as pessoas que não participam ou que deixaram de participar nas hostilidades, e restringe os meios e métodos de combate. (CICV, 1998).
O DIH é parte do Direito Internacional e é constituído por diversos tratados e convenções entre Estados, que tornam certos princípios gerais e costumes como obrigações legais para aqueles que as aceitam. Grande parcela do Direito Internacional Humanitário encontra-se presente nas quatro Convenções de Genebra de 1949 e, também, acordos para proibição do uso de certas armas e táticas militares encontram-se dispostas em convenções como a de Haia, 1907 e Convenção das Armas Convencionais, 1980. O DIH é aplicável apenas no âmbito de conflitos armados, internacionais ou internos, e não abrange atos isolados de violência. Ele garante a proteção e a proibição de ataque à feridos e doentes, prisioneiros de guerra, civis que não participam do combate, etc (CICV, 1998).
Relacionando o Direito Internacional Humanitário com os Direitos Humanos, pode-se perceber diversos pontos de convergência e divergência entre ambos. Partindo de uma perspectiva complementarista para o entendimento da relação entre os dois, entende-se que ambos são sistemas distintos, porém, que possuem relação de complementaridade e de superposição (BORGES, 2006). Ambos os conjuntos normativos visam a proteção da dignidade do indivíduo, o princípio da segurança, o princípio da inviolabilidade (integridade física e moral sob qualquer circunstância) e o princípio da não-discriminação. Porém, também possuem pontos convergentes como os principais atores de difusão, o contexto em que são aplicáveis e os mecanismos de obrigatoriedade (BORGES, 2006).
Todavia, o DIH é de extrema importância para a proteção do ser humano em tempos de conflitos armados e normalmente deve ser executado pelos próprios Estados que estão em conflito e que a ele resolveram adotar. Porém, muitos casos exemplificam a necessidade de haver uma intervenção para que se faça valer a aplicação do DIH em meio a um cenário conflituoso e que fira os princípios dos Direitos Humanos, por diversos motivos como a ineficácia do Estado em conflito em proteger sua população, falta de comprometimento do Estado nesta proteção, falta de recursos para um atendimento adequado, dentre outros.
[1] the theory of intervention on the ground of humanity (…) recognizes the right of one State to exercise international control over the acts of another in regard to its internal sovereignty when contrary to the laws of humanity”
[2] “humanitarian intervention is defined as coercive action by States involving the use of armed force in another State without the consent of its government, with or without authorisation from the United Nations Security Council, for the purpose of preventing or putting to a halt gross and massive violations of human rights or international humanitarian law